Colecionando sentidos

Jonas Freitas
4 min readNov 22, 2023

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I. HIDRATAÇÃO

como é bom lembrar as coisas, a gente sempre tem um monte de recordações do que viveu, de como viveu, e gosto muito quando consigo associar essa memória a uma sensação, uma gosto, uma cor… Por exemplo, sempre lembro de um ataque de rinite alérgica que fiquei mal mesmo, e fui baixar no hospital. A dona enfermeira lá não achava minha veia pra aplicar acho que o soro, com antialérgico.

Eu lembro de estar tremendo lá, com frio no meio do ceará!!! e quando ela finalmente conseguiu, cara… a sensação de “hidratação” no sentido da coisa. Eu me senti como uma planta, regada no meio do dia seco. De repente foi como se eu fosse o solo ressecado, que com um nadinha de água vira barro. Estranhamente me senti ligado a terra, e achei que tinha que sair logo daquele hospital, porque sentia que iam nascer raízes se ficasse mais tempo. Por isso também sai da sala da enfermaria com pressa, pernas bambas, louco pra deixar aquele lugar. Eu só sei que sentia o soro percorrer todo o caminho da minhas veias, em todas as veias. Tava muito ruim, mas foi bom sentir aquilo!

II. Paladar ferroso

Teve aquela vez que sofri um acidente de carro, nada sério, mas sinistro para o carro. Tanto que ficou um tempão encostado, a espera de conserto. Lembro que na batida, no ato da batida, além de sentir o baque, de sentir a pressão da terra, da gravidade, tudo girando e senti o que é pesar contra o céu. Foi como tentar dar uma pirueta e cair, mas sem me machucar. O som oco da batida, o barulho que sempre faz quando dois carros colidem. O vidro se estilhaçando, o plástico e o metal se deformando.

Sabe quando você dorme e ta pensando em correr, cair ou sei lá, qualquer coisa, e do nada isso se transforma numa resposta, tua perna se movimenta, teu corpo responde a sua mente. E é como um espasmo muscular, pois é, eu acordei várias vezes depois disso sonhando com essa batida. E sempre vem um gosto ferroso na boca quando lembrava disso.

Eu acho bem mórbido mas admito que tive um época um vislumbre de tentar imaginar como é uma batida pra valer, daquelas que você morre junto, que a carne se rasga e tudo se quebra. E sempre tenho esse espasmo muscular quando penso com muita força nisso, a abstração se faz movimento no meu corpo, pq se liga a uma memória que torna a sensação em possibilidade.

Somos tão frágeis… Vai tudo apodrecer, vai tudo virar historia…. O som oco, o metal, o vidro. Cair da bicicleta, se ralar. Deus me livre disso tudo. Fiquei com trauma de acidente. E agora sofro dessa maldição de sentir a batida se repetindo, de ouvir no canto da minha cabeça o mesmo som, a mesma desorientação e tudo virar 180°. Rodar, capotar, colidir, bater, fim. Sentir o chão se tornar duro. De repente se solidificar. E logo o asfalto, que se fazia tão macio aos meus 60, 70 km/h, se tornar uma barreira intransponível. Uma muralha. O Fim. Morrer. Isso nem quero imaginar, vou viver só uma vez essa vida, e sabe se lá. Mas que não seja acidente de carro, por favor!

III. Fedentina

O natal de 2017 caminhava para ser um dos piores que já aconteceu na família, que eu me lembre. Nem no meio da obra do Guará, chão partido, e saco de cimento pra todo lado foi tão ruim como agora. Mamãe agora com 69 já dá sinais de cansaço, de estafa. Mas fora isso o que mais mudou? Não houve disposição para montar a árvore, nem ao menos uma guirlanda. Mas pensando quem faz realmente ainda faz isso?

As prioridades e as objetivações se foram, e noto como todos desconfiam do projeto que antes nos mobilizava. “Arrumar a casa pro natal”. E será que houve uma arrumação final? Um ano que mamãe estivesse realmente satisfeita com tudo?

A bem dizer, de todo jeito a casa sempre foi um apêndice do ateliê dela. Até os fundos da casa no sítio tem peças dela. O natal vai acontecer no meio dessas peças e de mais uma obra que vinha acontecendo por aqui. A minha impressão é que não bastará nunca. Sempre juntando peças, sobras, pontas, restos, ajustando, reformando. Isso tem a ver com uma personalidade forte, segura, decidida dela. Mas e o que a gente tem a ver com isso? Tenho uma irmã que é pote até a Cochinchina de mágoas. E ela chora quando fala da mamãe, dizendo que ela não consegue perceber como isso aqui é ruim. Acho de uma inocência enorme, acho brega chorar assim, e acho alienação não entender que é um projeto sim, aliado as condições presentes. Mas qual momento as diretrizes de mudanças possíveis foi realmente considerada pela matriarca?

As sugestões solenemente ignoradas, a manias de acumular, os hábitos bem pouco saudáveis e a rotina escravizante que ela estabelece a si mesmo. Daqui a mais ou menos uma semana volto pro Rio, a piscina uma nojeira só, as moscas donas do pedaço e eu não sei mais o que. Cansaço não tem a ver só com velhice. Eu me arrumei para sair ao mercado mas desisti de ir. Não quero fazer nada, será se existe alguma vida social para além da convivência com gatos, empregadas, funcionários e essa fedentina toda?

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Jonas Freitas

As melhores histórias são as que ainda não foram contadas!