O Pirambu

Jonas Freitas
4 min readNov 22, 2023

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Poeta cearense Rogaciano Leite (1920–1969)

Pirambu bairro da fome, da nudez, escuridão, de mocambos atolados, de lixo na podridão, chaga que a cidade oculta, e a sociedade insulta, com as tertúlias sociais bairro que a Célia Guevara não pode ver cara a cara porque revolta demais.

Bairro dos meninos magros e de pais no desemprego; de fogões que não cozinham, de mães que não têm sossego; bairro onde os órfãos da sorte travam duelo com a morte tentando sobreviver; onde o pobre que trabalha só tem direito à mortalha do filho que vai morrer.

Bairro onde a noite se estende com seu enorme capuz sem ver no areial imenso um poste que tenha luz; bairro que chora e soluça junto ao mar que se debruça para ajudá-lo a chorar; recanto onde a verminose pediu à tuberculose carta-branca pra matar.

Submundo de almas aflitas que estrebucham pra viver, que vivem quase morrendo mas lutam pra não morrer; mundo infecto de palhoças sem privadas e sem fossas, sem jardim e sem quintal; sem um canto onde se pise sem que o sapato deslize nas fezes, no lamaçal.

Mundo que repugna aos olhos que faz mal ao coração; onde a infância não tem leite e os adultos não têm pão; mundo de miséria extrema, cujo difícil problema o Poder não encampou; Deus não faz ponto final, mas chegou nesse arraial, viu a tragédia e parou.

Em cada mocambo infecto mora uma prole infeliz, sem remédio e sem escola, sem água no chafariz; esses famintos cristãos nunca tiveram nas mãos uma carta de ABC; são nivelados a bicho, sobre montanhas de lixo que a prefeitura não vê.

Em cada eleição passada houve plataforma e esquema para redimir o bairro e acabar esse problema; cada candidato ao posto passou o lenço no rosto, fez um discurso e chorou; prometeu, comprometeu-se, arranjou voto, elegeu-se, ficou rico e não voltou.

Mães de olhos tristes e cavos dormem naqueles mocambos sob mantos de bacilos, sobre montes de molambos; descoberto, enregelado, tirita o filhinho, ao lado, sobre uma esteira de pau, onde passa a noite inteira chorando por mamadeira sem saber o que é mingau.

São choças esburacadas, perdidas na noite fria, onde a umidade é uma máquina de fazer pneumonia; na fedentina que exala o micróbio se propala na sua fúria assassina; e no tal bairro-suicida não se conhece hidrazida, não se vê penicilina.

À noite, o bairro adormece sobre a miséria perene; o escuro, os vermes, a lama, omau-cheiro, a anti-higiene; bem cedo, em vez de ir à escola, o menino pede esmola nos botequins do arraial; sabe que a fome é horrenda… mas não soletra a legenda do Pavilhão Nacional.

Naquela promiscuidade de aterradoras vigílias, prostitutas proliferam no recesso das famílias; sem pão, sem Deus, sem saúde, vendem a honra e a virtude por uma oferta qualquer… A fome quebra o caráter, neutraliza o instinto máter, reduz a zero a mulher.

Não é o pecado uma fúria no seu delírio carnal, mas seu único recurso contra a fome estomacal; forçada pela miséria, a virgem vende a matéria, e oferta a alma à Santa; eenquanto até Deus lhe foge, aquela que é pura hoje, será impura amanhã.

Tantas famílias com fome, tanta panela vazia; tantas fábricas fechadas por escassez de energia. Enquanto falta assistência, a indústria vai à falência em derrocadas fatais; só a desgraça do povo é sempre um motivo novo nos “rushes” eleitorais.

Que é feito de mil promessas que jamais foram cumpridas; em vez de casas decentes, lá só tem tenhas caídas. Nesses exíguos casebres há paralisia e febres, câncer nos seios das mães; mocinhas tossindo fundo, sífilies, doenças do mundo, gafieira como os cães.

É tempo, já, meus senhores, de extinguir esse problema; de acabar com essa mancha sobre a Terra de Iracema; crehces, hospitais, lactários, maternidades, berçários no bairro do Pirambu; enquanto os clubes dão festa, cada palhoça modesta sepulta um menino nu.

Dedicai um dia, ao menos, um dia de cada mês, para um bingo contra a fome, o desabrigo e a nudez. Olhai o bairro-problema na sua miséria extrema e o povo a chorar nas ruas… Com um só vestido de miss, talvez um clube cobrisse mil mocinhas que andam nuas.

Tende orgulho dos mais ricos, clubes que há neste País; mas tende também vergonha daquele bairro infeliz. Fortaleza é uma cidade, cuja flor da sociedade faz Monte Carlo tremer; e enquanto a society impera, a miséria prolifera em ritmo de estarrecer.

Pirambu, bairro dos tristes que a desventura cobriu; praia que as ondas não lavam, recanto que deus não viu; cidade de mortos-vivos que nem os negros cativos viveram tragédia igual; que na era dos foguetes mostram no rosto os sinetes da escravidão social.

http://blogs.rnemrede.com/poeta-leo-medeiros/rogaciano-leite-o-pirambu/

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Jonas Freitas

As melhores histórias são as que ainda não foram contadas!